segunda-feira, 6 de julho de 2009

Tese Hippie + Antítese Punk = Síntese Hüsker Dü


Um dos meus vários projetos que nunca saíram do papel foi um trabalho final da faculdade de jornalismo, no qual eu propunha estudar a história do rock por meio das capas de disco. Cheguei a preparar pré-projeto e encontrar um orientador, mas a falta de um recorte adequado, somado à ausência de conhecimento teórico na área de artes plásticas e à ansiedade de sair o mais rápido possível da universidade, fez a idéia naufragar. Acabei trocando-a por algo muito mais nobre e excitante intelectualmente: um jornalzinho para o bandejão da universidade, em parceria com um amigo. Professores da banca fingindo-se não enganados daqui, alunos fingindo-se não enganando de lá, o que importa é que me formei, depois de cinco anos e meio com a mesma pergunta na cabeça: - O que estou fazendo nesta m*?

Voltando ao meu projeto imaginário, cheguei a pensar em várias imagens que poderiam ilustrar a minha teoria. Um dos objetos de estudo já estava demarcado: a capa do disco Warehouse: Songs and Stories, do Hüsker Dü. Além de ser escolhida pelo imparcial critério da admiração artística, ela entrou no meu projeto - mental, é sempre bom lembrar - por se encaixar como uma luva na base teórica do meu estudo: a Dialética Hegeliana (atualizada para “dialógica” pelo meu orientador), na qual toda tese gera uma antítese, as quais, somadas, dão origem a uma síntese.

(Abre parênteses: agora, acho que agora me excedi. Quem quiser parar de ler o texto neste momento, tem todo o direito de fazer isso. Fecha parênteses).

No caso, a tese seriam as capas e cartazes coloridos, com toques oníricos, de bandas psicodélicas do final dos anos 60 (Beatles, Pink Floyd, Byrds, Grateful Dead, Jefferson Airplane e outros) e a antítese, as capas chapadas, muitas vezes em preto e branco, serigráficas, quase em formato jornalístico, dos grupos punks do final da década seguinte (Clash, Sex Pistols, Buzzcocks, The Jam e outros). A capa e a contracapa de Warehouse: Song and Stories, embora tragam o colorido psicodélico, não caminham tanto para o lado “sonhador” dos grupos dos anos 60, mas para algo mais decadente, pessimista, típico do fim da era Reagan — num clima bem “It’s the End of the World as We Know It (and I Feel Fine)”, profetizado pelo colegas de underground R.E.M na mesma época.

O mais legal é que essa opção gráfica expressa perfeitamente o que é o som do Hüsker Dü: a banda que deixou para trás a tônica de protesto social punk e passou a falar de sentimentos profundos, confusos; que trouxe a melodia para um movimento que se pautava quase que exclusivamente pela agressividade sonora. Como todo artista em processo de amadurecimento, essas características foram surgindo ao longo da carreira da banda, que começou tosca, rápida e pesada (no álbum Land Speed Record, de 1981), mas foi flertando aos poucos com o “flower power”, em músicas como Hare Krsna (do clássico Zen Arcade, 1983) ou na versão para o marco zero do psicodelismo: Eight Miles High, do The Byrds. O álbum Warehouse: Songs and Stories é, portanto, o ápice desse amadurecimento, quando a banda já tinha encontrado a sua marca e tava cheia de moral no circuito independente norte-americano.

Lembro-me da primeira vez que vi a capa desse disco: no verão de 1989, fui passar férias em Recife, na casa de um amigo que trabalhava na loja de discos Allegro Cantante. Numa das minhas visitas à loja, ele me mostrou o disco daquela banda que tocava Don’t Wanna Know If You Are Lonely (do álbum Candy Apple Grey, de 1986), única música que eu conhecia deles até então. Confesso que, ao me deparar com a foto do Hüsker Dü na contracapa, fiquei decepcionado: os caras usavam roupas do dia-a-dia, sendo que deles estava sem sapato e vestindo camisa rosa e o outro usava um bigode à Salvador Dali. Poxa, até aquele momento, do alto dos meus 15 anos, eu achava que um cara que tocava sons mais rápidos tinha que se vestir com jaqueta de couro preta, ou com roupas rasgadas ou, pelo menos, usar uma bandana na cabeça. Aquela simples foto de contracapa acabara de abalar parte das minhas crenças musicais, trazendo uma sutileza que eu ainda não era capaz de apreender.

Para reforçar essa confusão, lembro que, um pouco depois de ver aquela chocante foto da contracapa, li uma matéria na revista Bizz que continha um trecho mais ou menos assim: “ (...) e bandas inclassificáveis como Hüsker Dü e New Model Army”. Caramba, como assim? Como uma banda pode não ter classificação? Existem tantos rótulos no rock (punk, pós-punk, psicodélico, hardcore, hard rock, etc) e essas bandas simplesmente não se encaixam em NADA?

O mais interessante é que essa sonoridade do Hüsker Dü acabou sendo uma das grandes influências para grunges e indies da década seguinte, revelando que, na verdade, o trio de Minneapolis estava à frente do seu tempo. Do meu lado, o que posso dizer é que aquela decepção que tive aos 15 anos, ao olhar para a foto da contracapa de Warehouse, só foi se transformando, com o tempo, em admiração. Se em algum momento, a síntese proposta por aquela banda não rotulável abalou o meu eixo, em outro, tornou-se parte do meu norte.

PS: Acabei me atendo tanto a essa questão da capa, que não falei muito do lado sonoro do disco. Warehouse é um álbum produzido a partir do talento e do duelo de egos dos compositores e vocalistas da banda, o guitarrista Bob Mould e o baterista Grant Hart. Acabou se tornando um disco duplo, recheado de belas canções pop, exatamente para aliviar a disputa de espaço entre os dois. Apesar da excelência nas composições, o Hüsker Dü tinha um ponto fraco: eles eram péssimos em estúdio, o que faz com que a qualidade de gravação de todos os seus discos estejam entre as piores do rock!!!

6 comentários:

  1. Me lembrei de quando vi a capa do Pet Sounds e pensei: "esse disco deve ser uma merda!"
    Bem, não precisa dizer que o Warehouse e o Pet Sounds estão no meu topi faive.

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  2. Haha. A capa do Pet Sounds também me "agrediu", assim como a primeira ouvida no disco, com sons de "sinos de Natal". Ele e o Warehouse são dois discos muito fodas mesmo.

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  3. muito massa, pinduca!

    eu penso muito sobre essas duas tradições, uma muito melódica, baseada na encaixe mais "careta" da sílaba sobre a nota musical (Beatles, Byrds, Stone Roses, my bloddy valentine), e outra agressiva, onde a fala fica mais evidente, distorcendo um pouco a raiz da melodia (Bob dylan, Jimi Hendrix, o proto-punk e o punk, e até o hüsker dü no Zen arcade).
    Ultimamente eu vejo essa diferença não só como uma "dialética do rock", mas também como diferença cultural entre EUA e Grã-bretanha. Se você pensar na música gospel mesmo, nos EUA o gospel branco era visto como chato pelos roqueiros se comparado ao gospel negro, o primeiro sendo essencialmente melódico e o segundo mais rítmico, baseado no sentimento e na execução, no transe religioso. no caso da Inglaterra, a tradição gospel branca, de corais de igreja e harmonizaçõs vocais, influenciou muito as bandas dos anos 60 e essa tradição parece nunca ter deixado de existir entre as bandas britânicas (mesmo no punk, por exemplo, com o buzzcocks).

    o Legal é que as melhores bandas da história sempre passaram por cima desse estereótipo rock inglês/Rock americano. O Hüsker Dü é um dos melhores exemplos disso.

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  4. Valeu pela leitura do texto, Miguel. Acho a sua análise interessante e, inclusive, ela bate em várias partes com o falo no texto sobre a música Everybody's Changing, do Keane. Se tiver um tempo, dá uma lida lá.
    A propósito, há algum tempo li um texto seu bem legal sobre o Minutemen, publicado no site SEnhor F. Lembrei disso porque a trajetória do grupo de Mike Watt se assemelha, em muitos aspectos, com a do Hüsker Dü.

    abç.

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  5. hehe nem tinha lido, realmente bate bastante!

    muito bom o blog!

    abs

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  6. putz, mudou o meu nome, mas sou eu ainda hehe

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