

Minha amada companheira — uso esse termo para designá-la porque, embora moremos juntos, não somos casados no papel — é meio feminista. Eu digo “meio” porque, apesar das opiniões contundentes, ela não chega a ser radical em seu discurso. De qualquer forma, mesmo ponderada, ela e suas amigas estão sempre atentas a qualquer tratamento desigual em relação aos gêneros, mal que, desde os tempos mais remotos, coloca as mulheres numa condição injustamente desfavorável em relação aos homens.
Eu, pelo meu lado, devo confessar que nunca dei muita bola para esse tipo de questão. Talvez simplesmente por ter nascido homem; ou, de repente, por vir de uma família mais conservadora do que a dela; ou ainda porque as mulheres sempre tiveram muita força de decisão em minha vida: desde minha criação matriarcal até a chegada a um mercado de trabalho dominado em grande parte por mulheres — pelo menos, na minha área de atuação, o Jornalismo. Tudo bem que eu já quis esganar uma chefe ou outra, mas isso nunca foi pelo fato de elas serem do sexo oposto, e, sim, pela estressante e desgastada convivência no trabalho.
Apesar das diferenças, minha companheira e eu costumamos ter uma convivência harmoniosa, na qual o que reina é a tentativa de compreensão da visão do outro. No entanto, um ponto que ainda não conseguimos chegar a um consenso se refere à presença de mulheres em grupos de rock. Enquanto ela tende a valorizar - e até comemorar como uma conquista - a participação feminina em bandas, apoiada nas dificuldades impostas às mulheres na execução de atividades predominantemente masculinas, eu tenho uma postura mais ligada à qualidade musical destes membros de saias, sem levar muito em consideração o seu background. Na minha visão, o mundo é moderno o suficiente para permitir de forma indiscriminada a participação de qualquer pessoa, seja “macho ou fêmea”, em uma banda de rock.
Exposta essa divergência de visões, aproveito para revelar uma questão de gênero que, particularmente, vem me incomodando nos últimos tempos: a presença em bandas de rock cada vez maior de mulheres baixistas que não possuem a mínima intimidade com seu instrumento. Não sei exatamente quando começou tal fenômeno, mas possivelmente Kim Gordon, a musa do Sonic Youth, tenha uma grande parcela de responsabilidade em sua proliferação. Gordon, como se sabe, é uma figura de personalidade forte e extremamente estilosa. Sem sua voz quase sussurrada e presença de palco, 50% do charme do Sonic Youth correria o risco de se perder. Por outro lado, qualquer conhecedor de música sabe que a baixista do Sonic Youth não toca e não canta absolutamente nada e a impressão que dá é que, sem as orientações do marido Thurston Moore e do chapa Lee Ranaldo, ela não conseguiria diferir o dó do ré na primeira corda de seu baixo.
Kim Gordon seria apenas um caso isolado se não tivesse feito escola. Depois dela, várias outras baixistas não muito boas, entre elas, Kim Deal, do Pixies, passaram a integrar bandas alternativas, muitas vezes passando a impressão de que o estilo está sendo priorizado em relação à música. Antes que me interpretem mal, gostaria de ressaltar que sou grande fã tanto de Kim Deal (no Pixies e como compositora de mão cheia no Breeders) quanto de sua mentora e grande amiga Kim Gordon — indubtavelmente, grandes artistas e matrizes dessa série. No entanto, não é raro os melhores artistas darem origem às piores escolas e, dos anos 90 para cá, o que mais vi foram mulheres ocupando o posto de baixista em bandas de rock (em detrimento da guitarra, da bateria ou do teclado). E, infelizmente, com raras exceções, elas parecem ter pouquíssima intimidade com o instrumento, o que as deixa num papel próximo ao figurativo — pelo menos, em termos musicais.
E aí, entra a minha pergunta: — Será que conquistar espaço desta forma, deixando a música de lado e apostando quase que 100% no estilo, é realmente um passo à frente para as mulheres? De alguma maneira, apesar de todo o senso de modernidade por trás dessa atitude, tal posicionamento não colaboraria para mantê-las na condição de mulheres-objeto? Poxa, outro dia vi uma banda formada só por meninas no programa Experimente, comandado por Edgard Piccoli no canal por assinatura Multishow, e confesso que fiquei meio envergonhado pelo resultado musical apresentado. E, mais uma vez, no lugar da música estava o quê? O velho e conhecido estilo.
Neste ponto, cabe uma explicação sobre o próprio papel do baixo nas bandas de rock. Quem não é músico talvez não saiba, mas o baixo é visto — de maneira quase sempre ignorante — como o instrumento mais fácil de se tocar. Não que exista instrumento elementar: se você tem compromisso com a música, qualquer pedaço de pau oco se torna desafiador. No entanto, o baixo geralmente aparece como o coadjuvante dentro de um grupo, aquele que fica segurando a nota tônica enquanto a bateria e guitarra se encarregam de ornamentar a canção. Por conta dessa visão, digamos, mais prática (ou rasa, sob outro ponto de vista), o incompreendido baixo costuma cair nas mãos de instrumentistas que possuem menos destreza. E está aí, na minha opinião, o motivo de estar tão em voga entre algumas garotas estilosas.
Voltando às minhas discussões musicais com minha companheira, o que sempre argumento em relação a essa minha implicância com as mulheres baixistas é que não costumo levar em consideração se um membro de uma banda é do sexo feminino ou masculino. O que importa para mim é se esse componente é bom ou não na tarefa que desempenha. E, neste ponto, não precisa ser nenhum instrumentista virtuoso para angariar a minha simpatia. Uma das baixistas da qual sou mais fã, por exemplo, é Tina Weymouth, do Talking Heads, que está longe de ser uma virtuosa, mas compensa essa falta de manejo com idéias interessantímas, ótimas referências musicais e uma pegada única. Outras baixistas fenomenais são a careca Meshell Ndegeocello, essa meio virtuosa, e Michele Stodart, do Magic Numbers, com uma pegada forte e ótimo conhecimento técnico do instrumento.
Saindo um pouco do território estritamente do baixo, diversas outras mulheres na música pop me chamam a atenção pelo seu talento: Chrissie Hynde (Pretenders), Debbie Harry ( “a” Blondie), PJ Harvey, Bjork (no Sugar Cubes e na carreira solo), Aretha Franklin, Rita Lee, L7, Joan Jett e Lita Ford (The Runaways), Exene Cervenka (X), The Bangles, Suzy Quatro, Luscious Jackson, Madonna, Karen Carpenter, Cindy Wilson e Kate Pierson (The B-52’s), Carole King, Cindy Lauper, Patti Smith, Siouxsie Sioux (Siouxsie and the Banshees), Stevie Nicks e Christine McVie (Fleetwood Mac), entre tantas outras. Longe de ficar ligado na sua feminilidade, o que me atrai no trabalho delas é a sua musicalidade. Para mim, é apenas isso o que conta e por isso sou um pouco cético em relação à onda de mulheres baixistas que não tocam nada.
De qualquer forma, falar dessas relações de gênero é sempre difícil, por se tratar de um tema muito delicado. De fato, acredito que, por infelizmente ainda viverem em uma situação desfavorável socialmente, as mulheres precisam de todo o apoio para participar de diversas atividades, principalmente as relegadas ao universo masculino. E, de maneira alguma, esse texto tem a intenção de se opor a isso. Pelo contrário, o intuito é questionar se uma ação pretensamente afirmativa não estaria gerando um efeito reverso. Mas, como disse nos primeiros parágrafos, essa é a visão muito particular de um homem que pode estar deixando de levar em conta muitas peculiaridades e dificuldades enfrentadas pelas mulheres. Podem deixar que, se eu tiver falado besteira, conto com um sistema de patrulhamento poderoso dentro da minha própria casa.