domingo, 4 de outubro de 2009

A falsa luta de classes no Rock’n’Roll











Quando comecei a escutar rock’n’roll, em meados dos anos 80, o mundo ainda era dividido em dois eixos: o socialismo soviético e o capitalismo norte-americano. Talvez por conta dessa polarização política ou pela notória influência marxista na nossa intelectualidade, muito do que era publicado na imprensa ou ensinado nas escolas tendia a trazer em suas entrelinhas uma visão de luta de classes. No mundo da música não poderia ser diferente. Ao comprar as minhas primeiras revistas de rock, estava claro que existiam dois times rivais: os punks, representando a integridade e a revolução a partir de 1977, e o Rock Progressivo, a Disco Music e os seus filhotes pop, defensores do conservadorismo e do lado obscuro da indústria cultural.

Foi dentro desse clima de guerra fria que comecei as minhas incursões no rock. E, do alto da minha pouca capacidade de discernimento juvenil, assim como comemorava nas aulas de História a tomada de poder dos bolcheviques das mãos do Czar Nicolau II na Revolução Russa de 1917, passei a vibrar por qualquer matéria que revelasse a ascendência dos punks na música pop. Na minha cabeça, bandas como The Clash e Sex Pistols haviam aniquilado seus opositores de uma maneira tão eficaz e arrasadora como Stalin fizera na Rússia, a ponto de haver só espaço para o punk e suas ramificações (New Wave, Pós-Punk, Hardcore, etc) a partir do final da década de 70.

Essa visão de luta de classes perdurou na minha mente por algum tempo. Para mim, as coisas eram vistas meio que em preto-e-branco, com um grupo sempre dominando a música pop e não deixando espaço para os dominados. Então, a minha versão da história do rock se construía mais ou menos assim: de 1955 a 1962, o domínio do pop era dos criadores do estilo, a galera do rockabilly; a partir de 1963, os britânicos, liderados pelos cavaleiros dos Beatles, invadiram e dominaram o reino da música pop até mais ou menos 1970 (com o psicodelismo surgindo a partir de 1967); a queda dos Fab Four abriu espaço para o glam rock, o hard rock e a abominável tirania dos progressivos, liderados pelo impiedoso mago Rick Wakeman, até a chegada heróica dos punks ingleses em 1977. Em 1991, depois de um longo reinado da famigerada música pop, os mártires do Nirvana e seus asseclas de Seattle saíram de seu esconderijo underground para destruir o establishment, assim como os punks haviam feito uma década e meia antes. E por aí vai...

À medida que fui ficando mais velho e vivi certas experiências, passei a notar que o desenrolar dos fatos não era tão simples quanto eu imaginava. A história reta e linear foi então abrindo caminho para uma teia mais complexa, que dava espaço mesmo para os grupos não tão em voga lançarem discos legais em períodos de domínio de “rivais”. E, na realidade, a própria idéia de luta de classes – ou estilos, ou gerações - foi ficando para trás, quando vi que os ideais de um e outro grupo não eram tão antagônicos assim – na verdade, às vezes o grupo dominante havia, inclusive, bebido na fonte da geração anterior tão execrada, embora não revelasse. No momento em que tive esse insight, senti-me como participando do o último capítulo do livro Revolução dos Bichos (Animal Farm, em inglês), de George Orwell, só que na versão da música pop: olhando por uma janela, eu podia ver, no interior de uma gravadora, representantes da esquerda e da direita do rock sentados à mesma mesa e não havia mais como distinguir quem era progressivo ou punk.

Esse meu novo sentimento se materializou num texto da revista Mojo, que li no ano retrasado (ou passado, não sei – não consegui achar a revista aqui em casa). Na matéria, o repórter pedia que alguns ícones punk rock inglês – como Johnny Rotten e Glen Matlock, do Sex Pistols, e Captain Sensible, do The Damned, entre outros – citassem e descrevessem bandas dos anos 70 das quais eram fãs, mas não podiam revelar à época do estouro do movimento. Recordo-me de ter visto o Johnny Rotten citar uma banda esquisita de rock progressivo e de alguém (talvez o Captain Sensible ou o Glen Matlock) falar que gostava de Deep Purple. Já vi num documentário também o Johnny Rotten dizer que adorava Alice Cooper antes de se tornar famoso – o que não chega a ser uma grande traição do movimento, mas também traz seu grau de surpresa.

Seguindo essa mesma linha, já vi o pai dos mal-encarados e sujos metaleiros Ozzy Osbourne confessar que seu grande sonho na juventude era ser um pop e bem arrumado Beatle. No documentário sobre a vida de Joe Strummer, The Future is Unwritten (2007), é revelado que o líder do Clash era meio hippie antes de “defender” o partido punk (e deixar de falar com seus ex-amigos doidões do 101’ers). O vocalista dos Ramones, Joey Ramone, também já revelou ter sido glam e andar de sapato de salto alto antes de vestir suas jaquetas de couro pretas. E, aqui no Brasil, quem imaginaria que o metaleiro Andreas Kisser faria um dia turnê como músico convidado dos regueiros e skazeiros do Paralamas do Sucesso?

Ao mesmo tempo, é legal notar que aquela história de que, após 1977, quem deu as cartas foram apenas os punks também é uma grande farsa. Basta olhar a discografia de artistas de outros gêneros no mesmo período: o progressivo Pink Floyd lançou Animals em 1977 e o clássico The Wall em 1979; o Queen lançou News of the World em 1977 e The Game em 1980; o AC/DC lançou Let There Be Rock em 1977 e Highway to Hell em 1979; o rei do pop Michael Jackson lançou o clássico das discotecas Off the Wall em 1979.

Outro ponto interessante é ver a mistura, com o passar do tempo, de músicos de classes pretensamente antagônicas: o ex-guitarrista da banda de disco music Chic, Nile Rodgers, se tornou um dos produtores mais requisitados dos anos 80, trabalhando, inclusive, com artistas que influenciaram ou beberam da fonte do punk rock, como David Bowie, B’52’s e Duran Duran. O vocalista da banda pop/new wave dos anos 80 The Cars, Ric Ocasek, se tornou produtor de importantes discos do rock independente norte-americano nos 90’s: do clássico blue album do Weezer a Do the Collapse, do Guided by Voices, passando ainda por Rock for Light, dos punks rastas do Bad Brains. O stoner rocker Josh Homme, vocalista do Queens of the Stone Age, acabou de produzir o último álbum dos garotos indie punks do Arctic Monkeys. Aqui no Brasil, o roqueiro/blueseiro mainstream Roberto Frejat, do Barão Vermelho, já produziu os punks do Inocentes e, hoje, o plebeu oitentista Philippe Seabra produz bandas independentes de variados estilos, como Bois de Gerião, Beto Só, Los Porongas e Superguidis, e também bandas escancaradamente pop, como as brasilienses Superáudio e Colina.

O mais importante dessa história é sacar que não existem antagonismos da forma que às vezes nos “vendem”. Até hoje, ao ler algumas publicações especializadas em música, sinto vez ou outra uma certa defesa de um determinado estilo ou grupo de artistas em detrimento de outro, como se somente uma galera pudesse produzir boa música. Mais do que fruto de uma luta de classes, talvez a história do rock seja feita de uma troca meio caótica de experiências de artistas dos mais variados backgrounds - e é daí, inclusive, que nascem muitas vezes os novos caminhos. Utilizando uma expressão bem clichê e meio riporonga: o mais legal é se “despir de preconceitos” e ver o que cada música (ou artista) pode trazer de construtivo ou emocionante para a sua vida, seja ela feita por um cara cool como Nick Cave ou , no extremo oposto, por uma estrela do pop, como Kylie Minogue. Afinal, se até os dois astros autralianos de universos tão diferentes já toparam gravar juntos, por que seríamos nós, meros fãs mortais, que ousaríamos separar uniões tão belas e inusitadas como essa?

10 comentários:

  1. Pinduca, muito legal teu blog. Parabéns pelos textos! Aproveito a oportunidade e peço que visite o meu Pedal Musical.
    Abraços,
    Ronaldo

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  2. Essa estória de preto e branco é complicada, quanto mais pro povo do HC, do punk.
    Primeiro: Muito do que nós entendemos por rock inglês é produto da prosperidade e do seguro desemprego daquele país. Onde, no Brasil, você pode ficar ensaiando anos e dando eventuais shows?
    A arte, na maior parte das vezes, é produto do ócio, e me desculpem os mais puristas. Assim como o rock no Brasil, em grande parte, é um produto típico das classes médias das grandes cidades.
    Certamente algum idealista de plantão e não músico ficou chateado. Então eu sugiro que vá comprar um jogo de cordas pra ver como o rock é de classe média...
    E preto no branco que seja, Pinduca. E o nosso caso da UnB? E que permissividade tornava possível o povo dos Cabeluduro coexistir com o Maskavo? hahahahaahahaa...
    Se isto é assim aqui, o que dirá lá fora. Eu também tive minhas crises, até que o povo do Chemichal Brothers gravou com vários vocalistas de bandas de rock. Aí caiu a ficha em definitivo que estas facções são muito fantasiadas por nós, os fãs, e pela mídia.
    Me lembro, por exemplo de um comentário que ouvi em São Paulo, certa vez,sobre os Raimundos: Eles eram pobres lascados de Brasília que venceram na vida e blá blá bla..!

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  3. ae vei, muito legal o teu blog. o texto tá duca Pin! gostei muito.
    o q vc acha de escrever um texto sobre as mulheres no rock?

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  4. Opa Pinduca! Só pra reforçar...antigamente, com a DFTA (eu, salsicha, renzo, beto e mereguinha), cansamos de tocar com bandas, supostamente, antagonicas. Nós nos entendíamos perfeitamente, trocávamos idéias e experiências. E, é lógico, que não era como hoje. Quando o "Pandara" nos cedeu, gentilmente, um espaço após os ensaios do Maskavo Roots, para podermos "ensaiar" (ou divertir), vimos que a diferença é uma visão particular de alguém que quer causar. Classe média, ou baixa, estávamos reunidos para fazer algo. Um show, uma festa etc. Nem toda a causa tem o efeito merecido. Brasília não era separatista, musicalmente falando. Vamos citar um exemplo próximo. O Vourakis. Passeou por muitas bandas, de vertentes diferentes, mas não lhe foi negada a permissão de poder criar em todas elas! Lembro-me de dividirmos um show com o Cravo Rastafari (tenho até hoje em VHS) na UnB (anfi 9)! Essa, hoje, se torna uma escalação impraticável. Pois o Cravo seria uma banda de "Playboy" e a nossa não. Sendo que éramos muito parecidos em questões comportamentais e sociais. A luta de classes na música, ideologicamente falando, não cabe no Brasil. Na minha opinião, tentamos copiar modelos que nunca caberão aqui. Por uma série de motivos. Os tempos são outros e, concordo totalmente, que devemos buscar o futuro e não ficar chorando pelo passado. Se é que consegui me fazer entender... desculpas... Rss...

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  5. É bom lembrar também que atualmente no Brasil o rock se fundiu com o sertanejo!!! Veja o caso do Fresno com o Xitãozinho&Xororó!! E essa onde EMO que tem tudo a ver com punk e música romântica!!

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  6. Nós, seres humanos, possuímos a enervante inclinação para organizar tudo o que nos cerca em grupos bem definidos. Procuramos interpretar o mundo através de padrões. Separamos tudo desde pares de meia a movimentos artísticos. Só que a vida está longe de ser assim. Essa visão estanque ignora os meios tons, as zonas de sombra, a natural fluidez das coisas da vida. Quando compartimentamos bandas de música em movimentos distintos estamos apenas incorrendo no velho vício da busca pelo padrão. Como muitos músicos não estão nem aí para a rigidez dessas fronteiras artificialmente forjadas pelos fãs eles trocam experiências, consultam e bebem em várias fontes e intercambiam referências na maior tranquilidade. E dá-lhe mistura, fusão de estilos, releituras e parcerias! A música, assim como a vida, fica muito mais rica quando existe troca. Porra, e outra: quer coisa mais demodèe que luta de classes e facções? Isso parece papo do MST ou filosofia barata de mesa de boteco...

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  7. Pessoal, desculpem a demora nas respostas. Eu, realmente, ando meio ocupado e isso se junta à minha habitual preguiça e desleixo. Foi mal.

    Ronaldo: Valeu a visita. Legal o seu blog e as associações de música com bicicleta.

    Zeca: Tudo a ver o que vc disse. Realmente, rock tem a ver com classe média no Brasil. Legal também a sua lembrança da saudável permissividade do rock em Bsb (ou UnB). Quanto ao lance da música eletrônica nos 90’s, também tive um sentimento parecido com o seu quando os C. Brothers e outros artistas do gênero começaram a “conviver” com os roqueiros. O que dizer de Fat Boy Slim, ex-baixista do House Martins (da famosa “melô do papel”)?

    Lívia: Sua sugestão já está anotada. Confesso que não costumo pensar em música como algo ligado à gênero (masculino e feminino), mas vou fazer um esforço nesse sentido. Se um dia, tiver sensibilidade suficiente para falar das mulheres no rock (de Celly Campelo à guitarrista do The XX), vou postar um texto aqui. Valeu pela dica.

    Therje: Consegui te entender, sim. O que vc falou é bastante pertinente e bate até com o que o Zeca (Marcelo J.) já tinha dito sobre o rock na UnB. É muito legal que aqui em Brasília houvesse (será que ainda á?) espaço para estilos tão diferentes tocarem juntos, para um mesmo público. O próprio ecletismo da Feira de Música trazia um lance muito maneiro para a cidade: as bandas, de diferentes estilos, tinham a oportunidade de se conhecerem e tocarem juntas. Isso, certamente, ajudou a divulgar os grupos legais que surgiram aqui nos 90. Sobre o show do DFTA e Cravo na UnB: eu também tinha a VHS, mas a fita mofou (literalmente) na casa dos meus pais. Sobre a luta de classes: também acho que ela não cabe no Brasil e que esse papo já ficou para trás.

    Maskavo: Esse lance do rock se fundir com o sertanejo é até legal: o deprê é que o rock em questão seja representado pelo Fresno (rs)!!! Em matéria de rock+sertanejo, ainda prefiro o que os Mutantes fizeram em 2001 ou mesmo as fusões que o Pato Fu e o Motormama fizeram em algumas músicas (ou o que o Maskavo fez em 45!!!). De qualquer forma, o lance da mistura e a “queda” dos preconceitos é o mais importante.

    Débora: Concordo com tudo o que vc falou. Seu comentário deveria estar no lugar da postagem – e não dos comentários. De fato, esse papo de luta de classes ta pra lá de demodê.

    abraços a todos.

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  8. Quando somos jovens, temos vontade de pertencer a um grupo que represente, pelo menos em parte, nosso pensamento. Com o passar do tempo, vemos que as pessoas que pertencem a esse grupo nem sempre compartilham os mesmos ideais que nós. Muitas vezes as pessoas participam de um grupo só para se sentirem parte de algum movimento, sem necessariamente compartilhar a ideologia que aquele movimento representa. Outros fazem parte do grupo apenas por pura conveniência.

    Ao amadurecer, não por que nós éramos burros antes, mas pelo fato que nós passamos a vivenciar diversas situações, começamos a nos desiludir com os grupos que fazemos (ou melhor fazíamos) parte. Vemos pessoas que, antes eram nossos ídolos ideológicos, e agora passaram a “trair o movimento”. Só então passamos a ver o “movimento” como um grupo de pessoas com interesses e razões próprias que acabaram formando aquele “movimento”.

    É assim na política, no trabalho, em tudo, e não seria diferente na música.

    O russo Bakunin, ao ver o avanço do movimento socialista naquele país, cantou a pedra:
    "Assim, sob qualquer ângulo que se esteja situado para considerar esta questão, chega-se ao mesmo resultado execrável: o governo da imensa maioria das massas populares se faz por uma minoria privilegiada. Esta minoria, porém, dizem os marxistas, compor-se-á de operários. Sim, com certeza, de antigos operários, mas que, tão logo se tornem governantes ou representantes do povo, cessarão de ser operários e por-se-ão a observar o mundo proletário de cima do Estado; não mais representarão o povo, mas a si mesmos e suas pretensões de governá-lo. Quem duvida disso não conhece a natureza humana."

    Podemos fazer a mesma analogia para um militante “punk” que virou “astro punk”.

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  9. Chicon: Isso não foi um comentário, mas quase um tratado sociológico!!!! Foi copiar e colocar na minha futura tese de mestrado!!! Deixando as brincadeiras de lado: muito legal o seu comentário. Realmente, passamos por processos parecidos na juventude e uma das coisas legais da maturidade é enxergar a sociedade, no geral, com mais discernimento.

    abç.

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