
Um pouco antes do Natal, dei-me de presente o conserto da vitrola aqui de casa. Já estava sem ouvir discos de vinil há um punhado de anos, pois meu antigo som simplesmente enferrujou todo por dentro e o “novo” – comprado de segunda-mão pela minha amada companheira – quebrou uma semana depois de conhecer seu novo lar. Após uns dois anos de enrolação, resolvi botar a mão na massa – quer dizer, no bolso – e levá-lo a uma oficina de eletrônicos no final da Asa Sul, a qual, cumprindo os mandamentos da “Lei de Gerson”, acabou cobrando um preço alto por um serviço aparentemente simples.
Resolvida a novela do conserto da radiola, fui voltando tímida e lentamente a ter contato com os meus discos de vinil. Neste ponto, vale explicar que não sou daqueles fetichistas que idolatram os bolachões-de-sei-lá-quantos gramas, por possuírem mais graves e a capa grande de 31cm x 31cm, coisa e tal. Pelo contrário, tenho uma certa desconfiança em relação a esses puristas e chego a apostar que 50% das pessoas que sustentam tal discurso não sabem nem o que estão dizendo - simplesmente, voltaram a ouvir vinil porque é moda. E, aliás, cá entre nós, tem coisa mais chata do que ficar mudando o lado do disco a cada 27 minutos? Se existe uma revolução, ela se chama MP3, na minha humilde e contestatória opinião.
(Tá, mas vamos deixar meus dramas de lado para começar a porcaria dessa postagem. Aliás, já notaram o meu enorme ‘talento’ para nunca ser direto? O que era para ser uma abertura simples de texto acaba se tornando quase que uma descrição de personagem do livro ‘O Guarani’, de José de Alencar. Poxa, como todos já leram no título, essa postagem se presta a falar dos timbres horripilantes da MPB nos anos 80, mas, simplesmente, não consigo entrar no tema...)
O fato é que voltei a ouvir meus LPs. Modéstia à parte, devo confessar que, se o meu acervo é mediano do ponto de vista quantitativo, no lado qualitativo o considero razoavelmente rico. Nele, pode-se encontrar, por exemplo, um 3 Feet High and Rising, do De La Soul, ao lado de Please to Meet Me, do Replacements; ou um Extra Texture, de George Harrison entre vários do Led Zeppelin e do The Clash; Doolittle, do Pixies, está encostado no New Tradicionalists, do Devo, que, por sua vez, faz fronteira com What’s Going On, de Marvin Gaye, seguido por High Energy Plan, do 999, e por aí vai. Saindo da praia estritamente roqueira, há também diversos bolachões legais de música brasileira - alguns comprados e outros herdados de parentes - que vão de Lupicínio Rodrigues a João Bosco; do maestro soberano da bossa nova Tom Jobim aos tropicalistas Caetano Veloso e Gilberto Gil; do samba rock de Jorge Ben às crônicas urbanas de Noel Rosa e de seu discípulo Chico Buarque, entre outros.
Nessas minhas empreitadas pelo terreno fértil da MPB, além do imenso talento de nossos compositores, pude reparar uma característica não muito positiva na indústria fonográfica nacional: os timbres horrorosos dos discos gravados nos anos 80. Essa percepção, já existente desde a minha adolescência, tomou uma dimensão maior e mais amadurecida a partir da audição, há alguns dias, do álbum Luar (A gente precisa ver o luar), lançado em 1981 pelo compositor baiano Gilberto Gil e que marca o início de sua parceria com o produtor Liminha. À medida que o long play rodopiava na vitrola, ficava estarrecido como a caixa de bateria soava magra, como os instrumentos e a voz “brilhavam” mais do que o necessário, como a presença dos sintetizadores (tocados pelo bam-bam-bam Lincoln Olivetti!) era exagerada e como, enfim, a escolha equivocada dos sons de grande parte dos instrumentos ajudava a esconder a qualidade daquelas composições.
A partir daí, comecei a lembrar de faixas gravadas por artistas da MPB na década de 1980 que possuíam “desvios de conduta” muito parecidos com os apresentados no disco Luar. Vieram-me à cabeça timbres tenebrosos, como os do roquinho magro Punk da Periferia (do disco Extra, de 1983), de Gilberto Gil, uma espécie de afronta ao estilo criado por Chuck Berry & Cia, que não se salva nem com a participação do talentoso Lulu Santos nas guitarras. E o que dizer de Eclipse Oculto (Uns, de 1983) e Podres Poderes (Velô, de 1984), de Caetano Veloso, que poderiam servir de matéria-prima para uma aula do curso de produção musical – neste caso, de como nunca se gravar um disco - na renomada faculdade de Berklee, nos Estados Unidos? A música Lilás (do disco homônimo, de 1984), de Djavan, mesmo que gravada no exterior com músicos brasileiros e estrangeiros de primeira linha, é outra a chamar a atenção pelos teclados de gosto bastante duvidoso.
Neste momento, uma pessoa mais ligada em estilo poderia me dizer que os pedais de guitarra Flanger, Chorus e Phaser, os sintetizadores, as caixas de bateria mais magras, os baixos estalados e os famigerados solos de sax alto são produtos típicos dos anos 80, seja no Brasil ou no exterior. Portanto, essa estética encontrada nas músicas dos artistas de MPB só estava sintonizada com uma tendência mundial. De fato, isso explica muita coisa, mas não tudo. Na minha opinião, a questão é que, nos discos de MPB, essa fórmula foi, digamos, mais mal aplicada do que no resto do mundo – ou, sendo mais específico, nos EUA e na Inglaterra. Isso porque, por mais que os nossos músicos tenham incorporado a guitarra à música brasileira (desde a Jovem Guarda, passando por Mutantes e Novos Baianos), a tradição da dita MPB é quase que exclusivamente baseada no esquema voz e violão de cordas de nylon. Prova disso é a veneração dos tropicalistas pelo “gênio indomável” da bossa nova João Gilberto.
Ao ouvirmos os discos de música brasileira dos anos 70, notamos que, apesar de a estrutura de estúdio ser claramente mais modesta, os timbres e arranjos parecem ter mais estilo e ser, de certa forma, mais compatíveis com o “swing” - essa palavra é muito escro** - da nossa MPB: baixos graves, baterias “cheias”, etc. Tudo bem que rola uma ou outra coisa miserável, tipo o timbre da guitarra do solinho de Réu Confesso, de Tim Maia (pedal Fuzz ligado diretamente na mesa de som, que, de tão esquisito, virou cult), mas, em geral, o resultado em matéria de timbre nos anos 70 parece ser mais adequado e ter mais personalidade do que o da década seguinte. Basta ouvir discos legais, como Expresso 2222, de Gilberto Gil (1972), Tábua de Esmeralda, de Jorge Ben (1974) e Cinema Transcedental, de Caetano Veloso (1979), para concretizar essa visão.
O problema é que, na virada para os anos 80, o crescimento da pop music e do rock parece ter influenciado nossos compositores a caminharem rumo ao que era considerado moderno à época. Vem daí a busca pela sonoridade mais eletro-eletrônica e a batida mais reta. No entanto, como os artistas não tinham tanto conhecimento desse tipo de som e suas próprias composições se originavam de um lado mais acústico e ritmado, os resultados ficaram meio artificiais. Afinal, existe algo mais contraditório do que Caetano Veloso tocando violão ovation de nylon no videoclipe do pseudo-rock Podres Poderes? Neste ponto, nem a produção de feras como Liminha (e seu assistente de produção à época Chico Neves) nos discos de Gil, e do norte-americano Erich Bulling, no disco Lilás, de Djavan, conseguiu ajudar nossos artistas a terem um resultado sonoro mais aceitável.
O disco Estrangeiro, lançado por Caetano Veloso simbolicamente no fim da década de 1980 (precisamente, em 1989), trouxe novos ares para a produção musical brasileira. Capitaneado pelos norte-americanos Peter Scherer e Arto Lindsay (este último criado em Pernambuco), membros da banda experimental Ambitious Lovers, o disco muda completamente a forma de tratar os timbres e a execução dos instrumentos: o pop rock passa a dar lugar a algo mais cerebral; os solos dos instrumentos são trocados por execuções mais sóbrias, contidas; os próprios timbres perdem o excesso de brilho e passam a ser mais secos. Apesar de soar meio chato e cabeçóide na maioria do tempo, Estrangeiro traz de volta para os trilhos uma personalidade que havia se perdido desde a década de 70.
De qualquer forma, não se pode negar que os anos 80 foram um período rico em matéria de composições e da própria exposição dos artistas da MPB. Mercadologicamente falando, foi a década que deu estabilidade à carreira desses músicos. É uma pena que os timbres não estejam exatamente à altura das canções.