
A banda inglesa Keane não tem muita moral com a crítica, embora sejam bons na venda de discos. Já os vi tachados de sub-Radiohead e até de sub-Coldplay, o que, para qualquer roqueiro que se preze, chega a ser vexaminoso. Do meu lado, guardo simpatia por eles: acho que compõem bem e são bons de arranjo. Podem não ser o grupo mais criativo e estiloso do mundo e, provavelmente, não lançarão nenhuma tendência, mas fazem corretamente o dever de casa, que é produzir boa música.
Na verdade, esse post não é para falar propriamente do Keane, mas de uma canção composta por eles: o mega hit Everybody’s Changing. Estava comprando um presente no último sábado e, enquanto esperava pelo empacotamento do produto, fiquei ouvindo essa música, que tocava ao fundo numa estação de rádio qualquer. Torci para que a moça demorasse um pouco mais no embrulho, para que eu tivesse um pretexto para continuar dentro da loja até o fim da canção.
Para mim, Everybody’s Changing é o exemplo da música em que tudo deu certo para a banda. O compositor trouxe uma idéia bruta acima da média, a banda trabalhou com competência nessa idéia, que ganhou uma letra caprichada e recebeu uma gravação à altura. É como se fosse um jogo de futebol, em que o time ganha de lavada por entrar coeso em campo, mesmo não sendo tão superior assim ao adversário.
Everybody’s Changing tem então essa conjunção astral positiva, a começar pela a frase marcante de piano e a levada de bateria suave, mas pulsante. A entrada do vocal, afinadíssimo e com timbre tendendo para o agudo, engrandece ainda mais a composição, travando um duelo com o riff do piano dentro da dinâmica, em que, quando um entra, o outro sai. A harmonia é um caso à parte: em tom maior e sem dissonâncias, parece ser influenciada por música erudita, mas sem os excessos de um rock progressivo, o que a torna refinada e naturalmente agradável aos ouvidos. Para arrematar, a letra traz um certo ar nostálgico, que deságua num refrão “ganchudo”.
É engraçado, mas o fato de o Keane ser uma banda comandada pelo piano — embora no último disco tenham dado uma guinada rumo a um som mais viril, digamos assim — revela muito do rock inglês para mim. Sempre achei que uma das diferenças entre o rock britânico e o americano é o fato de os ingleses terem uma educação musical mais tradicional, voltada para o piano e o clássico, enquanto os americanos são mais crias do violão, da batida pulsante (herança do Blues). Obviamente, essa não é uma regra rígida: você pega os ingleses Led Zeppelin ou mesmo representantes do Punk 77, por exemplo, e vê que o que manda ali é o instrumento de cordas, é a pulsação. E, por outro lado, os americanos Brian Wilson e Rufus Wainwright são totalmente “do piano”.
Mas, em linhas gerais, a minha impressão é que a harmonia e melodia são mais refinadas na Inglaterra (e na Europa, como um todo) e a pulsação, o rock mais cru, tem mais força nos Estados Unidos. Talvez essa seja uma das explicações para o processo cíclico de alternância entre norte-americanos e ingleses na hegemonia do rock: num momento, quem manda é a harmonia; em outro, o público prefere a pulsação e o som mais visceral. E, neste ponto, a relação parece ser de admiração e competição entre os dois lados, com influência mútua. Parodiando a frase que define a relação futebolística entre Brasil e Argentina: é como se os roqueiros americanos adorassem odiar o rock inglês, enquanto os roqueiros ingleses odiassem admirar o rock americano.
No meio dessa disputa acirrada, Everybody’s Changing é um gol de placa do rock inglês.