segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Relações de gênero: mulheres baixistas














Minha amada companheira — uso esse termo para designá-la porque, embora moremos juntos, não somos casados no papel — é meio feminista. Eu digo “meio” porque, apesar das opiniões contundentes, ela não chega a ser radical em seu discurso. De qualquer forma, mesmo ponderada, ela e suas amigas estão sempre atentas a qualquer tratamento desigual em relação aos gêneros, mal que, desde os tempos mais remotos, coloca as mulheres numa condição injustamente desfavorável em relação aos homens.

Eu, pelo meu lado, devo confessar que nunca dei muita bola para esse tipo de questão. Talvez simplesmente por ter nascido homem; ou, de repente, por vir de uma família mais conservadora do que a dela; ou ainda porque as mulheres sempre tiveram muita força de decisão em minha vida: desde minha criação matriarcal até a chegada a um mercado de trabalho dominado em grande parte por mulheres — pelo menos, na minha área de atuação, o Jornalismo. Tudo bem que eu já quis esganar uma chefe ou outra, mas isso nunca foi pelo fato de elas serem do sexo oposto, e, sim, pela estressante e desgastada convivência no trabalho.

Apesar das diferenças, minha companheira e eu costumamos ter uma convivência harmoniosa, na qual o que reina é a tentativa de compreensão da visão do outro. No entanto, um ponto que ainda não conseguimos chegar a um consenso se refere à presença de mulheres em grupos de rock. Enquanto ela tende a valorizar - e até comemorar como uma conquista - a participação feminina em bandas, apoiada nas dificuldades impostas às mulheres na execução de atividades predominantemente masculinas, eu tenho uma postura mais ligada à qualidade musical destes membros de saias, sem levar muito em consideração o seu background. Na minha visão, o mundo é moderno o suficiente para permitir de forma indiscriminada a participação de qualquer pessoa, seja “macho ou fêmea”, em uma banda de rock.

Exposta essa divergência de visões, aproveito para revelar uma questão de gênero que, particularmente, vem me incomodando nos últimos tempos: a presença em bandas de rock cada vez maior de mulheres baixistas que não possuem a mínima intimidade com seu instrumento. Não sei exatamente quando começou tal fenômeno, mas possivelmente Kim Gordon, a musa do Sonic Youth, tenha uma grande parcela de responsabilidade em sua proliferação. Gordon, como se sabe, é uma figura de personalidade forte e extremamente estilosa. Sem sua voz quase sussurrada e presença de palco, 50% do charme do Sonic Youth correria o risco de se perder. Por outro lado, qualquer conhecedor de música sabe que a baixista do Sonic Youth não toca e não canta absolutamente nada e a impressão que dá é que, sem as orientações do marido Thurston Moore e do chapa Lee Ranaldo, ela não conseguiria diferir o dó do ré na primeira corda de seu baixo.

Kim Gordon seria apenas um caso isolado se não tivesse feito escola. Depois dela, várias outras baixistas não muito boas, entre elas, Kim Deal, do Pixies, passaram a integrar bandas alternativas, muitas vezes passando a impressão de que o estilo está sendo priorizado em relação à música. Antes que me interpretem mal, gostaria de ressaltar que sou grande fã tanto de Kim Deal (no Pixies e como compositora de mão cheia no Breeders) quanto de sua mentora e grande amiga Kim Gordon — indubtavelmente, grandes artistas e matrizes dessa série. No entanto, não é raro os melhores artistas darem origem às piores escolas e, dos anos 90 para cá, o que mais vi foram mulheres ocupando o posto de baixista em bandas de rock (em detrimento da guitarra, da bateria ou do teclado). E, infelizmente, com raras exceções, elas parecem ter pouquíssima intimidade com o instrumento, o que as deixa num papel próximo ao figurativo — pelo menos, em termos musicais.

E aí, entra a minha pergunta: — Será que conquistar espaço desta forma, deixando a música de lado e apostando quase que 100% no estilo, é realmente um passo à frente para as mulheres? De alguma maneira, apesar de todo o senso de modernidade por trás dessa atitude, tal posicionamento não colaboraria para mantê-las na condição de mulheres-objeto? Poxa, outro dia vi uma banda formada só por meninas no programa Experimente, comandado por Edgard Piccoli no canal por assinatura Multishow, e confesso que fiquei meio envergonhado pelo resultado musical apresentado. E, mais uma vez, no lugar da música estava o quê? O velho e conhecido estilo.

Neste ponto, cabe uma explicação sobre o próprio papel do baixo nas bandas de rock. Quem não é músico talvez não saiba, mas o baixo é visto — de maneira quase sempre ignorante — como o instrumento mais fácil de se tocar. Não que exista instrumento elementar: se você tem compromisso com a música, qualquer pedaço de pau oco se torna desafiador. No entanto, o baixo geralmente aparece como o coadjuvante dentro de um grupo, aquele que fica segurando a nota tônica enquanto a bateria e guitarra se encarregam de ornamentar a canção. Por conta dessa visão, digamos, mais prática (ou rasa, sob outro ponto de vista), o incompreendido baixo costuma cair nas mãos de instrumentistas que possuem menos destreza. E está aí, na minha opinião, o motivo de estar tão em voga entre algumas garotas estilosas.

Voltando às minhas discussões musicais com minha companheira, o que sempre argumento em relação a essa minha implicância com as mulheres baixistas é que não costumo levar em consideração se um membro de uma banda é do sexo feminino ou masculino. O que importa para mim é se esse componente é bom ou não na tarefa que desempenha. E, neste ponto, não precisa ser nenhum instrumentista virtuoso para angariar a minha simpatia. Uma das baixistas da qual sou mais fã, por exemplo, é Tina Weymouth, do Talking Heads, que está longe de ser uma virtuosa, mas compensa essa falta de manejo com idéias interessantímas, ótimas referências musicais e uma pegada única. Outras baixistas fenomenais são a careca Meshell Ndegeocello, essa meio virtuosa, e Michele Stodart, do Magic Numbers, com uma pegada forte e ótimo conhecimento técnico do instrumento.

Saindo um pouco do território estritamente do baixo, diversas outras mulheres na música pop me chamam a atenção pelo seu talento: Chrissie Hynde (Pretenders), Debbie Harry ( “a” Blondie), PJ Harvey, Bjork (no Sugar Cubes e na carreira solo), Aretha Franklin, Rita Lee, L7, Joan Jett e Lita Ford (The Runaways), Exene Cervenka (X), The Bangles, Suzy Quatro, Luscious Jackson, Madonna, Karen Carpenter, Cindy Wilson e Kate Pierson (The B-52’s), Carole King, Cindy Lauper, Patti Smith, Siouxsie Sioux (Siouxsie and the Banshees), Stevie Nicks e Christine McVie (Fleetwood Mac), entre tantas outras. Longe de ficar ligado na sua feminilidade, o que me atrai no trabalho delas é a sua musicalidade. Para mim, é apenas isso o que conta e por isso sou um pouco cético em relação à onda de mulheres baixistas que não tocam nada.

De qualquer forma, falar dessas relações de gênero é sempre difícil, por se tratar de um tema muito delicado. De fato, acredito que, por infelizmente ainda viverem em uma situação desfavorável socialmente, as mulheres precisam de todo o apoio para participar de diversas atividades, principalmente as relegadas ao universo masculino. E, de maneira alguma, esse texto tem a intenção de se opor a isso. Pelo contrário, o intuito é questionar se uma ação pretensamente afirmativa não estaria gerando um efeito reverso. Mas, como disse nos primeiros parágrafos, essa é a visão muito particular de um homem que pode estar deixando de levar em conta muitas peculiaridades e dificuldades enfrentadas pelas mulheres. Podem deixar que, se eu tiver falado besteira, conto com um sistema de patrulhamento poderoso dentro da minha própria casa.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Observatório da Imprensa Musical — Parte 2














Ontem (24/11), lendo a revista Megazine, do jornal O Globo, deparei-me com uma pequena nota que me incomodou bastante. O textinho, publicado na coluna Liquidificador, de André Miranda e Télio Navega, dizia assim: A revista britânica New Musical Express fez uma lista dos melhores discos da década. Deu Strokes na cabeça, com This is it (sic). Nada contra o grupo de Julian Casablancas. Mas e o White Stripes? E o Arcade Fire? Esses, sim, tiveram relevância na década.

Cá com meus botões, não acho correto ser determinista nessas questões de gosto ou julgamento de qualidade artística. Mas, por outro lado, precisamos de certos parâmetros para nos guiar e, neste ponto, vale recorrer à objetividade de dados e fatos históricos. Diante disso, considero que os jornalistas que redigiram a nota cometeram um erro crasso ao contestar a votação da NME. Ora, se existe um disco relevante na virada do milênio, que ditou grande parte do que seria feito dali em diante por toda uma geração, esse álbum se chama justamente Is this it. Que o digam Franz Ferdinand, Arctic Monkeys, Libertines e tantos outros grupos que apareceram nos últimos anos, alguns deles começando a partir de covers ou incentivados por shows da banda novaiorquina. Is this it, portanto, se tornou a matriz de uma geração e, como disse muito bem um amigo meu, pode ser considerado o Nevermind dos 00’s, guardadas as devidas proporções.

Diante de tamanha influência e relevância do álbum de estréia dos Strokes, não há chance nesssa corrida para White Stripes e muito menos para Arcade Fire. OK, a banda de Jack White lançou grandes discos ao longo dos últimos anos e construiu uma carreira talvez até mais sólida do que a dos amigos de Nova York. Mas, como álbum, Is this it continua sendo o mais importante da década, de forma quase incontestável. Quanto à colocação sobre o Arcade Fire, sinceramente essa nem vale muitos comentários. Tudo bem, o grupo canadense é simpático e compõe boas canções, mas comparar qualquer lançamento feito por eles com o primeiro disco do Strokes é não demonstrar muita noção da (recente) história do rock. Ou seja, os jornalistas do O Globo, ao criticarem a publicação inglesa NME, provavelmente baseados em seus gostos pessoais, acabaram escorregando feio no quiabo.

Por falar na revista Megazine, outro dia me deparei com um equívoco até meio engraçado na mesma publicação – se não me engano, na coluna Qual é a boa?, escrita por William Helal Filho. A nota falava sobre um show do Capital Inicial que aconteceria na cidade do Rio de Janeiro naquela semana — foi, portanto, antes do acidente do vocalista Dinho. Em determinado trecho da nota, o jornalista resolveu utilizar um sinônimo para Capital Inicial e acabou usando o termo “a banda dos irmãos Ouro Preto”. Bem, quem conhece o mínimo da trajetória da banda de Brasília, sabe que o Capital é formado pelos irmãos Lemos (Flávio, no baixo, e , na bateria). O vocalista Dinho tem até um irmão que já se envolveu com música, chamado Ico, o qual integrou brevemente a Legião Urbana, mas este não deve mexer com música há pelo menos vinte anos.

Diante desse quadro, a minha recomendação para o editor da revista Megazine, do jornal O Globo, é que dê um bom puxão de orelhas nos seus jornalistas musicais. Se continuarem assim, merecem ganhar de presente o troféu abacaxi da imprensa musical ou, sei lá, alguns meses de castigo na cobertura policial.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Clínica de Desintoxicação Musical














Outro dia, estava almoçando no aprazível e levemente insosso restaurante natural perto da minha casa, quando, de repente, um som de saxofone começou a temperar de melodia o recinto. O repertório, composto por standards da música pop, assemelhava-se um pouco à programação da rádio Antena 1, criando um ambiente agradável — ou pelo menos, não incômodo — à clientela do lugar.

Apesar de conhecer e até gostar da maioria das músicas, fiquei questionando em minha mente aquela forma tão batida de “arte”: Por que essas músicas de bar e restaurante tendem a carecer tanto de estilo e de uma execução mais visceral? Como esse saxofonista, que me parece bom tecnicamente, poderia agregar valor e adicionar “sal” ao seu trabalho? Nesse sentido, passei a pensar nas minhas próprias carências musicais, conseqüências diretas das minhas escolhas desde a adolescência, que me fizeram me aproximar de alguns gêneros e deixar outros de lado. E, assim como eu, passei a notar que quase todos os meus colegas músicos e/ou amantes de música tinham também as suas opções bem definidas, o que, se sob certo ponto de vista, ajudavam a construir os seus estilos, sob outro, deixavam lacunas na sua musicalidade. No meio desses meus devaneios, tive uma idéia que me pareceu bem pertinente naquele momento: montar uma espécie de Clínica de Desintoxicação Musical.

E para que serviria exatamente essa clínica? Bem, a idéia é que o cliente que decida se internar — ou, ao menos, fazer uma consulta — seja avaliado por especialistas em Rock e Pop, que consigam detectar os seus vícios musicais, para, a partir dessa análise, receitar os remédios adequados para a superação da “doença”. No caso, os medicamentos seriam compostos por playlists de gêneros que esse amante da música nunca ouviu, seja por preconceito ou simplesmente por falta de oportunidade.

Para mostrar como funcionaria a clínica, vamos utilizar como primeiro exemplo o tal saxofonista que ouvi outro dia no restaurante natural. Ora, sua música, apesar de apresentar técnica, carece claramente de estilo e inventividade. Então, o que receitar para esse paciente? Bem, acredito que doses cavalares de Velvet Underground, Suicide, David Bowie e Roxy Music possam fazer muito bem a esse rapaz. Como ele parece gostar de música brasileira, colocaria no composto um pouco de Arnaldo Baptista fase Loki, de Walter Franco fase Revólver e até um punk rock sujo da seminal coletânea Começo do Fim do Mundo (Lixomania ou Olho Seco poderiam cair bem). O importante é mostrar que nem sempre a melodia é a única solução de uma composição: às vezes, precisamos de atitude e descompromisso com a técnica também.

Partamos para outro caso hipotético: o de um viciado em punk rock e sons mais pesados. De certa maneira, sua visão musical é antagônica à de um músico de bar: provavelmente esse paciente, se for músico, toca mal e acha que o discurso ideológico é o principal elemento de uma canção. Bem, ele precisa se desapegar dessa visão minimalista e de excessiva contestação. Desta forma, a receita para sua desintoxicação pode estar em aplicações diárias de Billy Joel, Paul McCartney e Elton John. Acredito que um Burt Bacharach e até um disco de rock progressivo (Yes ou King Crimson) possam fazê-lo bem. Numa última etapa, esse viciado em discursos ideológicos poderia ouvir a orquestra de Ray Conniff e a Orquestra Filarmônica de Berlim, regida por Herbert von Karajan, tocando a 6ª sinfonia de Beethoven.

Ok, Ok. Às vezes, o tratamento parece radical, mas, acreditem, tem grandes chances de fazer efeito. Vamos então a um terceiro caso, para tentar tornar mais clara essa minha revolucionária idéia: um músico de banda indie, com fortes influências shoegazer. Bem, esse paciente precisa urgentemente elevar a sua autoestima e masculinidade musical, não necessariamente nessa ordem. Nesse caso, é bom mantê-lo afastado de bandas como Belle & Sebastian, Cardigans e outras fofices. Em contrapartida, esse músico deverá ouvir, de preferência amarrado a uma camisa de força, grupos como Van Halen, AC/DC, Creedence Clearwater Revival e, numa última e talvez traumática etapa, ZZ Top. Para torná-lo desapegado de artes gráficas estilosas, seria interessante ainda apresentá-lo às capas horrorosas do Funkadelic.

O último caso trata de músicos virtuosos, que gostam de Stevie Vai, Michael Angelo e Paul Gilbert, mas que revelam alguma afinidade com o gênero brasileiro Chorinho também. Bom, para esses pacientes, um bom punk rock (para dar ideologia) e alguns conjuntos de reggae (para ensinar questões de ritmo e alma) podem fazer toda a diferença. O tratamento deve se iniciar com doses de The Clash e Peter Tosh, progredindo para Rancid, Aswad, Steel Pulse, e terminando com Asian Dub Foundation, Arctic Monkeys e talvez alguns Raggas.

De qualquer forma, essas são fórmulas generalistas, apresentadas somente para exemplificar o trabalho da futura clínica. Caso, ao ler esse texto, você identifique algum vício em sua formação musical, o recomendável é procurar um especialista que possa ajudá-lo a se desintoxicar. Não tente se automedicar, pois alguns quadros podem até se agravar com tal procedimento. Os especialistas da Clínica de Desintoxicação Musical estão de braços abertos para receber aqueles que desejam ampliar e até mesmo refinar seu gosto musical.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

As guitarras entrelaçadas e nada convencionais de Nova York











É engraçado como a música, geralmente, está conectada à região de onde provem. Assim como sotaques, hábitos, tradições, culinária, muitas vezes é possível identificar a origem de uma banda apenas pela sua sonoridade. Às vezes, essa marca regional é tão forte, que acaba dando nome ao próprio estilo musical, como o Southern Rock (ou rock sulista) de Allman Brother, Lynyrd Skynyrd e Creedence Clearwater Revival, ou o Rock Gaúcho, aqui no Brasil.

A cidade de Nova York, nos Estados Unidos, é muitas vezes apontada como o grande centro cosmopolita do mundo. E, não à toa, suas bandas costumam trazer esse lado, digamos, mais “descolado” em sua bagagem: de Velvet Underground a Ramones; de Blondie a Vampire Weekend; de New York Dolls a Beastie Boys; de Talking Heads a Rapture, a sensação ao se ouvir esses grupos é a de abrirmos uma porta para o mundo, de estarmos penetrando num caldeirão multicultural, mesmo que isso signifique estar enclausurado em uma selva de pedra.

Além do perfil antenado, o rock novaiorquino também é responsável por gerar uma das escolas mais interessantes em termos instrumentais: a das guitarras entrelaçadas e nada convencionais, que, diante de tantas referências, ousam fugir à herança clássica e pura do Blues. Nesse aspecto, três bandas de gerações diferentes representam de forma brilhante essa característica: Television, Sonic Youth e The Strokes. Funcionando num esquema quase de árvore genealógica, elas se calcam na produção de seus antepassados, sempre prestando reverência ao patriarca da vanguarda novaiorquina: o Velvet Underground, banda que vestia roupas pretas e falava de heroína em pleno florescer do colorido movimento hippie; que vendeu poucos discos em sua época, mas veio a influenciar várias gerações posteriores.

Dessa herança do Velvet Underground somada às vanguardas do jazz (Be Bop, Fusion), surgiram as guitarras do Television, em meados da década de 1970. Tive a oportunidade de assistir a uma apresentação deles no Tim Festival, em 2005, e posso dizer que foi um dos melhores shows da minha vida. É impressionante como as guitarras de Tom Verlaine, com timbres quase limpos, casam com os sons mais saturados do doidão Richard Lloyd, formando uma espécie de balé de riffs e solos de guitarra, no qual mal se delimita o fim da frase de um e o início da do outro. Acredito que, como eu, muitos tenham dificuldade de, só de ouvido, saber quem é Lloyd e Verlaine dentro das canções do Television, tamanha a interação dos guitarristas. E a tal “renúncia do blues” faz com que, ao se assistir às apresentações da banda, vejamos os dedos dos dois guitarristas (principalmente, Verlaine) deslizando pelos braço da guitarra por caminhos não muito tradicionais, numa jam session que parece residir num lugar entre o rock e o jazz. Realmente, para um estudante de guitarra, o show do Television vale quase como uma aula do mestrado.

A dupla de guitarristas da banda oitentista Sonic Youth, Thurston Moore e Lee Ranaldo, parece ter estudado com afinco as lições dos mestres do Television, aprofundando ainda mais a questão do experimentalismo, com toques de música dodecafônica e John Cage. E se a onda do Television eram as jams e as escalas inusitadas, o Sonic Youth preferiu investir nas afinações esquisitas, nas longas e climáticas partes instrumentais e na extrapolação dos limites do próprio braço da guitarra. E, novamente, o entrelace das frases cria uma enorme dificuldade — no bom sentido — de identificação de quem é um ou outro guitarrista nas músicas do Sonic Youth. Um ponto interessante da sonoridade das guitarras da banda tem a ver com o que um grande amigo declarou a respeito do Lee Ranaldo (e que parece servir para o Thurston Moore também): a impressão que dá é que ele pega as escalas musicais naquelas revistas de violão e guitarra e só toca as notas onde o pontinho NÃO está marcado. Ou seja, é dissonância em sua forma mais pura, empunhada por uma das mais criativas e entrosadas dupla de guitarristas do rock.

Por fim, mas não menos importante, temos a rapaziada (esse termo é meio escro***) do The Strokes. Celebrado no começo do milênio como a grande sensação do rock moderno, o grupo de John Casablancas deixou de ser novidade e passou a ser alvo de algumas críticas no decorrer de sua carreira. Hypes à parte, trata-se de um bandão, formado por uma das mais afiadas dupla de guitarristas que já vi. Também tive a oportunidade de assisti-los no Tim Festival de 2005 e fiquei de cara com as guitarras extremamente bem timbradas, arranjadas e executadas. Na linhagem das guitarras novaiorquinas, o Strokes deixa o experimentalismo do Sonic Youth e as jams do Television para trás, investindo numa fórmula mais pop, de músicas de curta duração. De qualquer forma, a dupla de guitarrista do Strokes está longe de ser tradicional: tanto na forma de tocar seca e de riffs certeiros de Albert Hammond Jr. quanto nas frases mais longas virtuosamente empunhadas por Nick Valensi estão presentes referências ao lado jazzy do Television e à própria visão mais “aberta” de pensar da escola de rock novaiorquina.

Três grandes bandas de rock formadas por fenomenais duplas de guitarristas. O que Television, Sonic Youth e The Strokes nos provam é que, a despeito de toda a tradição que cerca o já cinqüentão rock’n’roll, as guitarras ainda podem surpreender e extrapolar limites, quando pensadas de forma inteligente e criativa. Neste caso, o cosmopolitismo novaiorquino ajudou a escrever um dos capítulos mais sofisticados e elegantes dessa história.

domingo, 1 de novembro de 2009

Banguela Records: há 15 anos, nasciam os primeiros dentes













Num tempo não muito distante, em que o acesso à internet ainda engatinhava, o modelo de império musical comandado pelas grandes gravadoras dava seus primeiros sinais de declínio. A despeito de as majors e seus artistas populares ainda gerarem receitas consideráveis, a experiência exitosa dos selos independentes - principalmente, na Inglaterra e nos Estados Unidos - desde os anos 80, mostrava que bandas boas não se acham (ou compram?) em qualquer esquina. De vez em quando, algumas dessas bandas e gravadoras menores cometiam a ousadia de furar as barreiras mercadológicas impostas pelas majors, estourando nas rádios e caindo no gosto do grande público.

Para não tomar rasteiras dos nanicos, as grandes gravadoras, além de utilizarem o velho recurso de contratar as tais bandas em ascensão, acabaram encontrando uma outra maneira de resolver o problema: passaram a se aliar aos seus pretensos adversários, incorporando - e, às vezes, até criando – selos alternativos. A iniciativa se mostrava boa para os dois lados: os selos pequenos ganhavam com a estrutura de distribuição das majors, enquanto as grandes gravadoras adquiriam qualidade artística e uma espécie de laboratório para seus futuros projetos. O estouro do Nirvana em 91, revelado pela pequena gravadora Sub Pop (e depois contratado pela major Geffen), trouxe glamour e respeito às bandas alternativas e fez com que as grandes gravadoras, mais do que nunca, buscassem uma maneira de se acomodarem a esse novo universo underground.

O Banguela Records, atrelado à major Warner, foi talvez o selo brasileiro com mais visibilidade nos anos 90. Apesar de existiram outros bastante relevantes no mesmo período - como o Chaos e o Superdemo, da Sony, e o Plug, da BMG - o Banguela conseguiu imprimir sua marca de uma forma diferenciada, muito por conta da notoriedade trazida pelos proprietários do selo, os Titãs, e, principalmente, pelo perfil visionário e bom de marketing do seu diretor artístico, o jornalista e produtor musical Carlos Eduardo Miranda.

Eu tive a sorte de participar um pouco dessa história, por meio do Maskavo Roots, uma das primeiras bandas contratadas pelo Banguela. Meus primeiros contatos com o que viria a ser o selo foram feitos em maio ou junho de 1993, quando o Fred, baterista do Raimundos, levou a 1ª demo do Maskavo para a redação da revista Bizz, onde trabalhava o Miranda, à época bastante dedicado à divulgação de grupos novos. Foi o próprio Fred quem nos informou que o Miranda havia gostado da nossa demo e, desta forma, nos incentivou a entrar em contato com o jornalista da Bizz. Nesta época, o selo ainda nem existia e o meu intuito era mais negociar uma nota sobre o Maskavo na Bizz, o que realmente acabou rolando naquele segundo semestre de 1993.

Passei, então, a falar por telefone com o Miranda de vez em quando. Além de atuar como jornalista, ele também dava algumas dicas para as bandas iniciantes: - Tenta arrumar um show aqui, fala com o produtor “x” acolá. Lembro até de um dia em que o Miranda me passou o telefone de dois “caras legais” para trocar idéias em Recife: Fred 04 e Chico Science. Acabei nunca ligando para eles, mas, outro dia, fazendo uma faxina na casa dos meus pais, achei engraçado me deparar com o papelzinho onde tinham os números anotados. Bem, mas voltando propriamente ao selo, recordo-me de, em uma dessas ligações para o Miranda, ele me dizer que tava rolando uma idéia de montar uma gravadora com os Titãs, para eu ficar ligado naquilo, pois o Maskavo era uma das bandas cotadas para entrar naquele barco.

Dito e feito. Acho que um pouco depois da primeira edição do seminal festival independente Junta Tribo, ocorrido em agosto de 1993, em Campinas, a Folha de São Paulo publicou uma matéria com os Titãs, na qual eles falavam sobre a criação do Banguela Records, selo cujo nome, se não me engano, havia sido inspirado na música (e título do disco) Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas. A foto que estampava a matéria era do Raimundos, que, mesmo sem ter disco lançado, já era apontado com a grande revelação do rock brasileiro naquele período, ao lado de Chico Science & Nação Zumbi. Se o quarteto de forró-core brasiliense era nome certo dentro do Banguela, as outras quatro bandas que comporiam o cast do selo ainda não estavam definidas: havia uma certa disputa entre um grupo maior de umas sete ou oito bandas, entre elas, o Maskavo.

Apesar de, do alto do meu pessimismo e baixa auto-estima, eu ter certeza absoluta de que o Maskavo não passaria nessa peneira, recebi no final do ano de 1993 um telefonema do Miranda, dizendo que havíamos sido selecionados para o cast do selo, ao lado de mundo livre s/a (PE), Little Quail and the Mad Birds (DF), Graforréia Xilarmônica (RS) e os já certos Raimundos (DF). A idéia, segundo o Miranda, era gravar os Raimundos em janeiro de 1994, no estúdio Be Bop, em São Paulo, e, em março, o mundo livre e o Maskavo ao mesmo tempo, cada um em sua cidade de origem. Em determinado momento, houve uma mudança de planos, com o Little Quail passando à nossa frente, pois já os membros estavam morando em São Paulo, e, depois, o Kleiderman, projeto paralelo dos “patrões” Branco Mello e Sérgio Britto. A gravação do Maskavo, portanto, foi adiada para o segundo semestre de 1994, o que, num primeiro momento, nos deixou bastante ansiosos.

Para controlar a ansiedade e sabermos um pouco mais do que estava rolando, além de falarmos por telefone quase toda semana (com as secretárias Lara e Renata), passamos a visitar esporadicamente a sede do Banguela, no próprio estúdio Be Bop, no bairro de Pinheiros, quando íamos fazer show em São Paulo. Em uma dessas visitas, tivemos a oportunidade de escutar a mixagem do álbum Samba Esquema Noise, do mundo livre s/a. Lembro de ficar impressionado com a ousadia e doideira da música Terra Escura, que trazia um sampler ao contrário de um jingle de uma marca de molho de tomate. Neste ponto, era comum encontrar membros das outras bandas na sede do selo também, que acabava servindo como QG para os artistas do cast. Além dos nossos colegas brasilienses do Raimundos e do Little Quail, tivemos bastante contato com o pessoal do mundo livre, pois, além da citada visita à mixagem deles, durante a nossa gravação foram os pernambucanos que estavam lançando o seu disco em São Paulo. Com os gaúchos do Graforréia, acabamos tendo pouco contato, pois, assim como a gente, eles continuaram morando em seu estado de origem - além de terem optado por gravar o disco de estréia da banda, Coisa de Louco II, no Rio Grande do Sul.

Uma das características do Banguela era a extrema informalidade como as coisas eram tocadas, o que, por muitas vezes, acabava descambando para o lado da desorganização, mesmo. Nós, do Maskavo, por exemplo, assinamos o nosso contrato numa filial do McDonalds em Ipanema (RJ), levado pelo Fred, baterista do Raimundos. Além disso, dava para ver, tanto nas nossas visitas quanto na gravação do nosso disco, que as leis da administração não eram tratadas de forma muito ortodoxa por ali. O lado positivo era a ótima estrutura de gravação oferecida para as bandas: um ótimo estúdio (Be Bop), com excelente técnico (Beto Machado) e produtores tarimbados (Miranda e, às vezes, um Titã). Além disso, a experiência e os contatos jornalísticos do Miranda faziam com que os discos tivessem um amplo espaço na mídia. Ou seja, não havia esquema melhor para uma banda iniciante naquele período.

Quanto aos Titãs, alguns apareciam mais no estúdio do que outros: lembro de muitas visitas do Branco Mello a nossa gravação, para encontrar o seu amigo Nando Reis, um dos produtores do nosso disco. Eles também costumavam emprestar equipamentos para as gravações (guitarras, baixo, bateria, violão, amplificadores) e até faziam participações nos discos - Nando Reis tocou viola no disco dos Raimundos, Branco Mello e Sérgio Britto fizeram backing no disco do Maskavo e até a atriz Malu Mader, esposa de Toni Belotto, cantou na faixa Musa da Ilha Grande, do disco do mundo livre. Os Titãs ainda davam espaço para as bandas do selo abrirem os seus shows: cheguei a assistir a um show de abertura dos Raimundos, na boate brasiliense Zoom, na turnê do álbum Titanomaquia. Nós, do Maskavo, chegamos a abrir um show para os Titãs, gratuito, no Vale do Anhagabaú, mas tomamos pedrada da platéia depois de tocarmos um “sambinha” (trecho da nossa música “Quinta”).

Um aspecto interessante se refere aos bastidores do selo. Lembro de, durante um jantar na gravação do nosso disco, o Miranda comentar chateado o fato de ter perdido o Planet Hemp para o selo Superdemo (Sony), tocado pela produtora Elza Cohen. Pelo que entendi, a banda de D2 e Cia. estava negociando o lançamento de seu primeiro álbum com o Banguela, mas a demora no fechamento de um acordo somado ao recebimento de uma boa proposta da Sony fizeram a banda carioca cair fora. Hoje, olhando para trás, dá para ver que, de fato, o selo dos Titãs estava perdendo uma espécie de “mina de ouro” naquele momento.

O primeiro disco do Maskavo Roots, gravado em outubro e novembro de 1994, acabou sendo lançado apenas em março de 1995. Acho que o do Graforréia Xilarmônica saiu um pouco depois, ainda no primeiro semestre do mesmo ano, fechando o ciclo das primeiras cinco bandas contratadas pelo selo. Depois disso, o Banguela realizou outros lançamentos, como a boa estréia dos campinenses do Língua Chula, os primeiros álbuns dos brasilienses do Pravda e dos paulistanos do Psycho Drops, a coletânea de bandas curitibanas Alface e uma fita cassete dos paulistas do Party Up. Mas essa fase eu já não acompanhei tão de perto.

O engraçado é que o fim do Banguela, de certa forma, parece estar associado ao Maskavo Roots. Mais ou menos na época do lançamento do nosso disco, os Titãs voltaram a ser agenciados pelo mega empresário Manoel Poladian, famoso pelos “sucessos” de RPM, Rita Lee, Elis Regina, Jorge Benjor e dos próprios Titãs, entre outros. Por incentivo dos diretores do selo (Miranda e o norte-americano Brian Buttler) e dos próprios Titãs, acabamos negociando e assinando contrato com o Poladian, no dia em que abrimos o show para o Jorge Benjor no Ginásio do Ibirapuera. Parecia uma jogada de mestre: éramos a banda mais pop do selo e estávamos indo para as mãos de Midas do mega empresário Manoel Poladian, o que tinha tudo para nos fazer estourar e, por sua vez, trazer recursos para a gente e para o próprio selo. No entanto, alguma coisa deu errado naquele processo e o tiro saiu pela culatra: pelo que sei, o advogado do Poladian teve acesso aos contratos do Banguela (com a Warner e com as bandas) e, achando toda a estrutura jurídica e administrativa deveras amadora, considerou que aquilo poderia trazer risco financeiro para os Titãs. Daí em diante, na minha visão da história, só vi as coisas degringolando para o selo e para a própria carreira do Maskavo Roots.

Pelo que acompanhei posteriormente, já a distância, depois de sair do Maskavo, vi o Banguela se transformando em Excelente Discos (nesta nova etapa, filiado à Abril Music) e lançando discos legais, como o primeiro do Acabou La Tequila e o segundo do mundo livre, e coisas que eu considero de gosto mais duvidoso, como Virgulóides e Maria do Relento. Quanto às cinco bandas originais do Banguela, com o fim do selo, cada uma foi tomando o seu rumo: os Raimundos, estouradíssimos, passaram a integrar o cast da Warner; o mundo livre continuou a parceria com o Miranda na Excelente Discos; o Little Quail foi para a Virgin; o Maskavo foi para o selo Chaos, da Sony, e a Graforréia, pelo que sei, lançou seu segundo disco, Chapinhas de Ouro, de forma independente.

Apesar dos pesares, minhas lembranças daqueles tempos são as melhores possíveis: dos cartões amarelo (advertência), vermelho (sai do estúdio e volta mais tarde) e PRETO (proibido de entrar no estúdio o dia inteiro) dados pelo Miranda durante a nossa gravação até a zona no ônibus que levou os artistas do selo para a primeira edição do Video Music Brasil, da MTV, em 1995, o que ficou foi a sensação de ter participado de algo original e importante para um período de consolidação e, ao mesmo tempo, de mudança de comportamento do rock brasileiro.